Há dias assim, acordo tarde e já moído
pelo dia que vai alto. Logo ali sentado na cama enrolo "toscamente"
um cigarro e deixo o sabor me dar algum gosto à garganta e algum lume à alma.
De seguida, ligo o piloto automático,
deixando seguir o instinto mergulhado num silêncio mudo. Encharco a cara com
água fria e enfio umas calças de ganga ao calhas (qualquer merda serve para
"roçar", pois sinceramente não me chateia, nunca tive
"isso" das peças certas para os lugares certos, mesmo consciente do
preço que se paga por esse relaxo!).
Já meio vestido, meio
"amanhado", contínuo num percurso (meio instintivo, meio programado!)
entre as divisões do pequeno apartamento, acabando sempre num final
"viciado", dado pelo click do botão que coloca a máquina do café a
trabalhar. O tempo, nesse instante abranda numa última pausa, "como que em
expectativa", quase semelhante ao momento antes da partida de uma corrida.
Tempo que literalmente foge com o bater dos segundos e obriga a rever os
pensamentos mais importantes em "post it" cerebrais, marcando a
ansiedade do começo.
Num instante, estou "jogado"
ao trânsito, com o mp3 ligado no máximo, concentrado nos buracos da estrada,
nos "buracos" do trânsito, nas fintas e refintas, que por vezes roçam
a sorte do momento. E sinto-me bem, sinto-me vivo, sinto-me no limite da
liberdade crua e sem romantismos, onde a velocidade não só nos transporta de um
ponto para outro, como de um estado de espírito, que tantas vezes temos de
vestir, para outro, onde andamos simplesmente... "nus".
Nestes dias, tenho (confortavelmente inconscientemente!) a
tendência, de fazer a vontade à irresponsabilidade. Perder-me por aí, num "vadiar" por sítios conhecidos e
caminhos desconhecidos. "Seguir" as ruas sem ver ninguém, e parar nos
sítios mais improváveis, que nem precisam de ser assim tão diferentes, mas que-se
revelam naquela sensação (pela surpresa!) que passaram por nós no tempo, sem
nunca os termos visto.
Na verdade, acho que sou sempre
empurrado por uma inquietude rebelde, que me "arrasta" numa
"vadiagem" de rua em rua, de sítio em sítio, de lugar em lugar. Umas
vezes perdido do mundo, outras ... perdido de mim próprio, mas sempre fascinado
com os detalhes, com os quais escrevo textos sem caneta e tiro fotos sem
máquina. Detalhes de sítios, detalhes de pessoas, ou simplesmente detalhes do
tempo, que teima em marcar a sua presença, tão bem como o homem, que por sua
vez passa a vida a tentar enganá-lo como vingança!
Enquanto acelero, vejo passar as cores
dos prédios, que se entrelaçam no seu estender, sobre diferentes texturas e
formas. Fachadas de todas as imagináveis formas permitidas pela arquitectura,
aqui e ali salpicadas com o verde das árvores ou com espaços vazios que
permitem ver outras ruas, outras fachadas, outras paredes que se levantam, logo
ali por detrás, numa maneira quase labiríntica como se de um jogo de lego se
tratasse.
Sorriu e penso que as cidades geram o
cenário perfeito para "fugir" do próprio ambiente que criam, não só
pelo seu viver que se vai renovando (na descoberta do antigo e na curiosidade
que traz o novo), mas também pelo seu movimento enervante, rebelde...
possivelmente até paranóico! Humores rodoviários "personalizados" que
se vão desenrolando numa atitude quase sempre egoísta, colocando-nos numa
verdadeira aventura, que nos absorve na experiência ao ponto de mergulharmos
numa solidão que sabemos ser, povoada por uma multidão.
Tudo
isto, leva-me (a mim... e a outros, que como eu rasgam este cenário urbano!) a
arriscar um pouco mais os limites, "deslizando" entre o trânsito
"nervoso", que nos olha de lado com inveja da nossa liberdade, da
nossa vontade, da imagem de sermos nós próprios, um pouco mais livres (naquele
momento!) do que os outros.
(Na realidade, é bom deixar-se ser absorvido por este tipo de
sensação, um tipo de "quase" consumismo que dispensa o lado
financeiro, e nos dá um saber "quase" poético da realidade, com
cenários multiplicados, que se desenrolam aos nossos olhos, iluminados pela luz
clara que "entra" por entre as caixas de betão, deixando revelar a
beleza de uma imperfeição sujeita a tanto, e principalmente... sujeita a quem a
criou.)
Os semáforos alternam-se e moderam-me
os excessos. Sem dar por isso, já deixei para trás as ruas, as fachadas
compridas, as varandas aproveitadas por marquises, e embato de frente com o rio
que corta a cidade.
Ombreio desacelerando, para me deixar
levar por instantes pela corrente ininterrupta, com uma velocidade própria,
indiferente a mim e principalmente indiferente ao "meu" tempo.
Por oportunidade, vou acabar por
descobrir um sítio para parar, enrolar um cigarro e deixar-me ficar. Não
procuro ver nada, à excepção da passagem da água que ajuda a organizar os
pensamentos, como se os enxaguasse, deixando-os mais preparados e limpos para
os arrumar.
Deixo, assim, o corpo cair novamente
sobre o banco e carrego com força no travão de trás, o que faz o pneu resvalar
no empedrado velho, até o travão conseguir finalmente "estancar" o
movimento. Cheguei onde queria chegar, dando conta que já perdi o destino original
(como quase sempre!).
Saio da mota e puxo pela caixa metálica do tabaco, enquanto me
sento num velho e ferrugento ferro "de ancorar". Não sei se vou
demorar ou se vou arrancar de seguida depois de três ou quatro bafos que me
encham os pulmões, mas tenho a certeza que vou voltar a seguir caminho
(independente ao tempo!). Traçar outra rota e voltar-me a perder, embalado no
barulho do motor enquanto sinto o seu "esforço", que corresponde ao
rodar do meu pulso... às vezes louco, às vezes calmo, mas sempre obediente às
minhas vontades, como uma amante apaixonada.
Por instantes, sinto que a paixão é a
base deste vício de liberdade, um vício estranho, tão estranho que marca o
estilo de vida, que marca as vontades, que marca os valores. No fundo que marca
a personalidade, de uma maneira tão verdadeira que não se molda por mentiras,
nem falsas poses, apenas por uma vontade enorme de ser eu, sem medo do que os
outros esperam (e queiram!) que eu seja.