São 2 da manhã, um céu negro vai se desenrolado sobre nós, deixando ver nitidamente múltiplos pontos de luz que parecem "fura-lo".
Sigo a luz de presença avermelhada que vai na frente, deixando-a abrir caminho num estranho dançar com as linhas "tatuadas" da estrada. Ao meu lado, um outro farol (a par com o meu!) ajuda a "iluminar" mais uns metros deste cenário pintado a "cor de escuridão", e logo atrás de nós, outra luz persegue-nos ao mesmo ritmo, fechando este pequeno grupo desalinhado, que persiste em manter um bom andamento.
Estranhamente, pela hora, o ar é quente, e inunda a respiração dentro do capacete, enquanto aquece a pele nua das mãos e do pescoço completamente desprotegida e entregue a "este vento da velocidade" inundado por um calor inesperado de uma noite de principio de primavera. Mas talvez seja também este calor, que faz as motas fluirem nesta velocidade "agitada", fazendo-as "engolir", de uma maneira "quase" relaxante", quilómetros de uma estrada quase vazia, ou melhor, de uma estrada pontualmente ocupada por "vultos", que vão ficando para trás, com ultrapassagens que lhe contornam as formas e certamente... estremecem os vidros e os sentidos.
Faço um esforço para me focar no caminho real, mas todo este ambiente "embala-me" o espírito, ao ponto de sentir o "afinado" barulho dos motores mergulhar os meus pensamentos numa espécie de túnel. Devagar, perco-me algures entre esta estrada e um outro percurso que-se desenrola em "rewind", não de um dia , não de uma história, não de um momento, mas de uma vida, de escolhas, e de... atitudes.
Pregos num caixão , pregados entre cigarros enrolados e garrafas meio vazias - hoje de cerveja, ontem de tequilla, amanhã de uma treta qualquer que desça pela garganta e que distraia um pouco em loucura, as mazelas da alma.
De repente, erguido da escuridão pelas luzes dos nossos faróis, reparo num sinal gigante com placas de alumínio pintadas com diferentes cores de sinalização. Marcam diferentes distancias, enunciam diferentes cidades (todas familiares para mim!) e apontam em diferentes direcções, o que me dá a sensação de estarmos num "estranho" centro de caminhos inexactos - caminhos que, como raios de sol, "rebentam" de um ponto central, e percorrem o espaço, estendendo-se nos seus diferentes comprimentos, como uma historia escrita em vários, incertos e apaixonantes capítulos.
Assim, sou "mandado" pela imaginação para a "porta" de alguns desses sítios, ladeando essas "entradas" de personagens que se foram cruzando comigo, e que me mostraram o melhor e o pior de lugares, situações, tempos, e até de mim próprio e ... desta minha loucura, que peregrinou em milhas e quilómetros sobre ela própria, sempre procurando com rebeldia um "bocado" de sorte, fosse num balcão de um bar desconhecido, num cheiro de uma mulher quente ou naqueles "caminhos de terra e pó" marcados por uma nuvem que se levanta à nossa passagem, para depois, lentamente, assentar sobre o traço deixado pelo nosso pneu.
Se calhar agora, já não procuro tanto a sorte como antes, resignado às poucas vezes que me cruzo com ela, mas continuo a "vadiar" nos mesmos sítios, incentivado por uma rebeldia entranhada, que consome o tempo e me eleva na percepção do mundo no simples toque com a realidade.
A atenção chama-me de volta para a estrada, que se desenrola numa folha de alcatrão por baixo dos meus pés, e deixo por agora os pensamentos. Vejo a mota da frente inclinar-se num movimento estiloso e acompanho-a instintivamente, em sintonia com a mota ao meu lado, o que nos coloca na faixa de saída (ou melhor, de entrada!) para umas bombas de gasolina que-se iluminam com caixas de luzes brilhantes, cobertas de vinis, que ostentam as cores da marca. Obrigatoriamente, percorremos um corredor de 50 metros, por uma ligeira inclinação de uma faixa, e já debaixo do "tecto" do nosso destino, paramos as motas.
Dos quatro, apenas dois precisam de atestar as motas, enquanto eu e outro paramos, paralelamente, no pequeno parqueamento para paragens temporárias. O silêncio pauta o ambiente e apenas as nossas vozes, e os "suspiros" metálicos dos motores desligados, quebram a monotonia à nossa volta. Não há um único carro a abastecer ou estacionado, e dentro da bomba (de portas já fechadas!) o lugar da empregada está vazio, em frente a um intercomunicador mudo.
Eles tentam mesmo assim atestar, mas como era previsível, não conseguem, por isso têm de esperar que apareça numa das portas (certamente de um escritório, ou algo parecido!) uma rapariga sem pressa. E apareceu! É tão feia, que nos apanha de surpresa! Até o seu andar meio apatetado do sono, a torna numa personagem sinistra, com uma sobrancelha única a cobrir-lhe os olhos vermelhos e cansados, certamente deste trabalho que já lhe sugou qualquer tipo de beleza e agora lhe suga o que resta da alma. Talvez pela visão, os meus dois amigos apressam-se a pagar a gasolina, atestam os depósitos e juntam-se a nós, no passeio.
À nossa volta existe um vazio denso, apesar das muitas luzes que iluminam toda a zona comercial (estando o restante, tapado à vista, pela noite). Enquanto enrolo um cigarro falamos disso (e claro, da "gaja" feia!) o que nos faz ficar a "curtir", por momentos, a calma "quase" sombria que envolve aquele lugar. Engraçado como ainda há pouco me sentia "num" centro de um qualquer lugar e agora (um par de quilómetros mais à frente!) sinto-me "num" fim de um lugar qualquer. Partilho essa ideia e todos concordam, talvez o façam porque todos passamos pelo mesmo sitio ou então, talvez... porque são todos tão loucos como eu. Seja como for, estamos agora aqui, sentados no que decidimos ser, neste momento, um "fim do mundo", indecisos sobre quem vai dar conversa " da tanga" à miúda feia das bombas( para a convencer a vender umas latas de cerveja, pois a esta hora já é proibido comprar álcool por aqui!) e a "gozar", por breves instantes, o tempo que parece ter parado para ajudar a esticar o corpo moído.
No fundo, em boa verdade, o que rodeia o momento pouco importa, aqui, como em tantos outros sítios já passados, o mais importante é o sentimento do momento, assim como as pessoas que lhe pertencem e a própria razão de ele existir (mesmo que muitos não a compreendam).
Mas porque o amanhã, será depressa um ontem preso a um tempo que não pára, reflectindo-se numa inquietude do mundo que não nos deixa parar por muito tempo, voltamos a "enfiar" os capacetes, e preparamos-nos para seguir. Ainda perguntei a mim mesmo, no instante antes de carregar no "start"; para onde iríamos a seguir, se já estávamos no fim do mundo, mas o barulho do "começar" foi quase sincronizado entre as motas, e num momento "rápido", sem conseguir completar a resposta à minha pergunta, estou lançado já para lá daquele fim, embalado novamente naquele vício, que risca e arrisca a alma, agarrado a este guiador, como se me agarrasse a própria vida.
Com o passar dos quilómetros, o cenário começa a mudar, os "múltiplos pontos de luz" multiplicam-se agora também pela planície acidentada, "aclarando" num tipo de aura o que nos espera mais à frente. Sinto o tempo aquecer ainda mais (como é normal quando entramos em zonas urbanas!), o grupo começa a organizar-se para se dividir e seguir caminhos de ocasião separados.
Assim, a primeira mota a afastar-se, despede-se com um toque de "nós dos dedos" entre condutores, e traça uma mudança de rumo, deixando-se escapulir por uma saída à esquerda que a faz desaparecer por uma ponta solta, que se afasta da linha cosida aonde continuamos. Mais à frente outra escolhe tambem uma diferente direcção, fazendo o mesmo ritual de despedida, e ficando para trás, como se largada no espaço. Sobram assim, duas motas, que "cruzam" mais para o interior da cidade. Mas depressa ( porque continuamos ao ritmo de viver!) somos separados por saídas diferentes numa das muitas rotundas da cidade. E é por causa do caminho que tomo que sou obrigado a parar num semáforo no início de uma grande avenida. Aproveito para olhar o céu opaco, mas já não vejo as estrelas (o que mostra que já estou "rodeado da luz citadina"!) Vejo sim, deste ponto, numa linha recta, o meu destino, espaçado apenas por semáforos, que a esta hora são inconvenientes para a vontade de lá chegar. Por isso, desespero pela mudança de côr do sinal.
Verde! Arranco, mesmo sem querer, envolvido por uma pequena ansiedade, que pode bem ser da aproximação do "destino" ou simplesmente pelo cansaço da hora! Mas sem perder muito tempo a pensar nisso, "galgo" a maioria dos sinais, oscilando entre os verdes e os amarelos. Sinto-me como se perseguisse rebeldemente algo que não vejo... talvez um sonho. Na verdade sinto que o faço constantemente, mesmo que a pisar os limites, mas não me importo, é importante persegui-los (aos sonhos!) mesmo que possam acabar por se revelar bem mais culpa da loucura, do que realmente de algum propósito intelectualmente planeado. Na realidade acabam por valer o mesmo, sempre sujeitos à sorte do futuro.
Vermelho! Não consegui "escapar" ao ultimo! Travo " em cima" e deixo acalmar o motor que vem numa rotação "gritante". Tenho o coração um pouco acelerado, e a respiração oscila entre o esforço de uma pequena corrida e a adrenalina de um pequeno "abuso". Olho à minha volta, abro a viseira para ouvir a cidade ( que neste momento, por causa da mota, me ouve mais a mim!), e realizo que estou sozinho. Penso nos que seguiram em "direcções diferentes", com a certeza que também eles perseguem e perseguirão alguma coisa.
Verde! Sorrio... Felizmente sei que a loucura tende em atrai-se, por isso havemos de nos voltar a encontrar. Até Breve.
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(photo by#Garcia#Hated of the world) |